quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Impotência sentimental na figura de um abraço

Com algum frêmito torpe, deixou o prédio cotidiano, disposta, mais uma vez, a abandonar tudo. Não podia mais com todas aquelas infâmias, pensava. Por que ela, entre tantas, devia suportar uma parentela ignóbil como aquela?

Enumerou todos os exemplos conhecidos que comprovassem a veracidade do que pensava: até o homem que mais lhe repudiava parecia mais digno do que seu pai. Relembrou amargamente tudo o que ele lhe causara, desde as dívidas até a usual ingratidão – tudo lhe provocava asco.

Seu corpo não pedia por nicotina, mas acendeu um cigarro só pelo prazer fugaz que tal ato lhe proporcionava, em especial pelo que lhe cabia de rebeldia. Fora proibida de fumar, por conta de uma descoberta infeliz de uma endoscopia. As fisgadas no estômago lhe comprovavam que a moléstia lá continuava, o que lhe deu ainda mais impulso para tragar o Lucky Strike Light, único cigarro que pôde encontrar nos escombros de sua bolsa. Algum dia ainda terei que me livrar desse lixo.

Caminhava contrariada, pois havia se certificado de que o combustível que havia colocado no automóvel da família bastaria para a semana. Era fruto de seu próprio dinheiro (expressão que lhe era desconhecida agora, dada a impossibilidade de desfrutar de seu salário – culpa do pai), e, como tal, deveria ser revertido para si. No entanto, seu pai pensara ser melhor ir à igreja que se localizava do outro lado da cidade, motivo pelo qual não pôde buscá-la, que tomasse um trem.

Odiava tomar o trem. E, mais do que os outros dias, sentia-se indisposta para tal: os sapatos não eram apropriados para a caminhada de seis quarteirões, longínquos, inacessíveis, o que lhe provocava bolhas nos pés. Teve raiva de seu pai mais intensamente. Quase esbofeteou o ar, imaginando seu inimigo perverso, mas a idéia de súbito lhe pareceu ridícula. Talvez devesse poupar esforços para empacotar suas coisas, ao chegar em casa. Não podia mais.

Aquele cheiro característico de transporte coletivo lhe invadiu as narinas assim que pisou no trem. Teve vontade de deixar o local, mas não havia escolha. Pagar um taxi estava fora de cogitação naquele momento. Não havia dinheiro suficiente. Aliás, tal frase solucionou uma série de potenciais possibilidades no decorrer do último ano: não havia dinheiro suficiente. Apertou o punho, pois sabia a quem direcionar sua raiva.

As estações se seguiram lentamente, os pés lhe doíam - tudo parecia massacrá-la. No entanto, com um lampejo de lucidez, glorificou seu estado – ao menos sentia algo, e tinha motivos para se rebelar contra o mundo (o que nem sempre acontecia). Estar no centro da ira do universo lhe causava um bem invertido: era especial, mesmo que momentaneamente.

Porém, o bem estar dissipou-se assim que vislumbrou as costas de seu pai ao chegar em casa, utilizando seu único prazer diário: o computador. Naquele instante, arrependeu-se de não ter se armado de frases cortantes e verdades inabaláveis para ridicularizá-lo e fazê-lo sentir-se como ela, abandonada. Tudo bem. Diria o que pudesse pensar naquele momento, desde que o confrontasse.

Iniciou a caminhada na direção do pai, para dizer-lhe as palavras já em putrefação que lhe povoavam a mente. Foi aí que, repentinamente, ao observar a nuca um tanto gorda e os cabelos oleosos, surgiu uma compaixão pegajosa, que lhe foi tomando integralmente.

Não podia ser possível. Prezava muito mais sua ira do que aquela benevolência inexplicável. Sabia tudo que aquele homem lhe causara, por que não podia fazer-lhe o mesmo? Mais do que equilibrar as coisas, aquilo lhe proporcionaria um elo com o mundo, com o mal dos homens que gostaria de conhecer. Sentia vontade de sujar-se, mas não podia. Simplesmente não podia.

E, contrariada, foi se aproximando de seu pai. Com os braços abertos. Encenando um abraço. Eis o que lhe podia oferecer. Sua dignidade, que seja. Pois sabia que aquele dia não chegara: era com uma sofreguidão inexpressível que o amava, perdoara e já se esquecera de todos os males.